A Inteligência Artificial como instrumento para garantir segurança jurídica e proteção ambiental nos processos de licenciamento

Alexandre Burmann[1]

Rafael Pereira[2]

Quando perguntado a qualquer consultor, advogado ou empreendedor sobre as maiores dificuldades existentes na área ambiental, uma das respostas sempre será: ausência de segurança jurídica nos processos de licenciamento ambiental. Tal situação pode ser justificada por falta de uma lei geral nacional – a regulamentação que trata mais especificamente do tema é uma Resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA nº 237/97)[3]. Em razão da lacuna da lei strictu sensu, os demais entes federados – Estados e Municípios – fazem por bem dispor de suas próprias normativas, no âmbito de sua competência constitucional. Porém, o que muitas vezes poderia ser uma ótima solução, pode ser tornar um sério problema para todos os envolvidos nos processos de licenciamento, inclusive para o próprio órgão ambiental.

Uma das causas desta citada insegurança jurídica nos processos de licenciamento ambiental é a ausência de sistematização nos procedimentos. Mesmo com a “questionável” Resolução CONAMA nº 237/97 já prevendo, em seu artigo 10, a obrigatoriedade de adoção de padronização de procedimentos no processo de licenciamento ambiental – e apesar de tal situação ter evoluído consideravelmente nos últimos anos -, ainda é notório o subjetivismo na condução dos processos pelo órgão ambiental.

Há, pelos órgãos ambientais espalhados pelo país, ausências de “termos de referência” que indiquem os documentos e estudos necessários para a instalação dos mais variados empreendimentos; muitas vezes, a manifestação do órgão ambiental pode variar de acordo com a “ideologia” do técnico responsável pela análise do processo de licenciamento; em outras ocasiões, as complementações/esclarecimentos técnicos, que deveriam ocorrer em somente uma oportunidade, se repetem e acabam com qualquer possibilidade de cumprimento do princípio da “razoável duração do processo”.

Uma novidade que pode auxiliar na criação de normatização e sistematização de procedimentos nos órgãos ambientais é a adoção da modalidade de licença ambiental por adesão e compromisso – LAC. Nas leis municipais e estaduais recentemente aprovadas em Santa Catarina, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, essa modalidade de licenciamento foi inserida como modalidade de licença, além das já conhecidas “licenças prévia, de instalação e de operação”. Nesta sistemática que é adotada para alguns tipos de atividade (definidas nas leis locais), os empreendedores encaminham de forma eletrônica toda a documentação exigida pelo órgão ambiental, que emite a licença de forma automática ao interessado. Para esta situação, ganham importância os responsáveis técnicos pelos empreendimentos, os sistemas de tecnologia para monitoramento e a fiscalização, para coibir os desvios, equívocos e atos de má-fé.

Todavia, esta tecnologia não será somente usada para exercício do poder de polícia estatal. Com a ferramenta da inteligência artificial, podemos ter uma real inovação na análise dos processos de licenciamento ambiental – inicialmente, na modalidade de adesão e compromisso, e futuramente, nas demais espécies de licença.

É inegável que a tecnologia tem sido aliada das mais diversas áreas do saber quando se pretende atingir o maior nível possível de acerto em atenção a escolhas racionais possíveis. É nesse ponto que reside talvez a árdua tarefa da Administração Púbica para análise de processos e condições por pessoas humanas: um sem fim de hipóteses impossível de serem analisadas em prazo razoável com a acuidade necessária para o fim pretendido.

Ocorre que, ao tempo da edição da maior parte dos instrumentos legais – incluindo-se aqueles que versam sobre o licenciamento ambiental -, partia-se do pressuposto de que a análise pontual e específica pudesse conferir a determinada situação um nível ótimo de avaliação, através de um procedimento complexo que se chamou de licenciamento ambiental. A discricionariedade dos atos administrativos, a falta de objetividade e sistematização, em conjunto com as inúmeras incertezas que surgem a cada licenciamento, acabam por gerar a já citada insegurança jurídica. O efeito da norma sobre o fato segue sendo um complexo elemento.

A incerteza científica é, portanto, objeto claro de preocupação do Direito Ambiental.

A judicialização dos elementos que compõem o caminho entre o fato a aplicação da norma segue sendo algo natural para o mundo jurídico. É o meio pelo qual perduram inúmeras ações judiciais que – devido ao alargamento na sua tramitação – geram soluções muitas vezes indesejadas para todos: meio ambiente, empreendedor, Administração Pública e cidadãos.

Vige, na sistemática atual, a aplicação prática de um sistema já chamado por Talachini [4] de “science in policy”, ou seja, o conhecimento científico aplicado a questões legais específicas, e não mediante a inserção do caráter de incerteza nos instrumentos legais produzidos – o que se denomina de “policy for science”.  Tem-se perante o licenciamento ambiental (sobretudo nos casos complexos) uma política de atuação precaucional que não coloca como obrigação normativa uma antecipação das incertezas. Ao contrário do que se observa, a linha de atuação é contrária ao que se chama de ongoing normative assessment, através da qual não se aplicam conceitos puramente filosóficos ao princípio da precaução, mas sim a assunção do conhecimento no sentido de que sabemos da nossa atual situação de incerteza[5].

Saindo um pouco de conceitos meramente jurídicos, o entendimento sobre a diferença entre eficácia e eficiência é de importante valia. Enquanto a primeira diz respeito à palavra usada para indicar que determinada organização realiza seus objetivos, a segunda representa que os recursos estão sendo utilizados de forma produtiva, de maneira que os recursos estejam sendo bem utilizados, atingindo-se as metas com alta produtividade. O que se pretende deixar clara é a necessidade de implementação de alto grau de eficiência em processos de licenciamento ambiental por meio de uma sistematização dos processos. Ao gestor incumbe cumprir com as suas obrigações de acordo com metas, no menor prazo possível e com a menor quantidade de falhas possível. Trata-se, desse modo, de agregar eficácia e eficiência à sucessão de atos administrativos que levam à pretendida licença.

Pode-se afirmar, desse modo, que o resultado até aqui obtido quanto à utilização de processos formais para licenciamentos ambientais é eficaz: tais práticas têm gerado óbice a eventuais atividades que estejam em desacordo com a harmonia pregada pela lei ambiental sejam efetivadas no plano dos fatos. De outro lado, também pode-se dizer que esses mesmos procedimentos/processos ambientais não são nada eficientes: apesar de fazerem a coisa certa, não procedem com o uso de menor tempo e recursos possíveis. Não se trata de fazer terra arrasada, portanto, mas sim de se implementarem práticas mais eficientes a processos que – em tese – mostram-se eficazes sob a ótica de proteção ambiental.

E quais são os recursos disponíveis para estabelecer uma sistematização de processos com o uso de menor tempo possível?

O atual momento, dados os fatos acima apontados, exige que sejam realizadas normatizações para sistematizar o licenciamento ambiental. A intenção seria conferir eficiência aos processos administrativos, mediante aplicação dos meios tecnológicos disponíveis, dentre os quais se incluem a inteligência artificial – que se traduz como a capacidade de máquinas de serem comparadas a humanos, aplicando-se-lhe bom senso e reais possibilidades de aprenderem, raciocinarem e superarem desafios complexos no que tange ao processamento de dados de uma vasta gama de domínios naturais e abstratos.[6] Por meio do aprendizado de máquinas (machine learning), deep learning (aprendizagem profunda) [7] e conceitos de inteligência analítica, a implementação prática das políticas acima, em tempos atuais, parece totalmente viável e acessível ao sistema de proteção ambiental.

As incertezas geradas por situações fáticas das mais diversas possíveis podem ser interpretadas a partir de uma análise global, regional ou local antes inimaginável. Plataformas de Jurimetria[8], por exemplo, têm se mostrado precisas quanto a demandas ou situações já passadas. Sistemas de modelagem que há alguns anos pareciam inacessíveis fazem parte de projetos como de Direito Computacional, do MIT[9], em que se discutem questões como perspectivas legais sobre algoritmos, tecnologias computacionais, análise de dados, dentre outros.

Quando se abordam questões do dia-a-dia perante licenciamentos ambientais, diversos são os casos já existentes sobre o mesmo fato. Nessa hipótese, uma análise a partir de dados baseados em diversas plataformas, em especial perante decisões consolidadas nos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais, por exemplo, poderia trazer agilidade e acuidade à decisão sobre determinado fato. De outro lado, quando se está diante de situações complexas e com eventuais incertezas científicas em questões de efetiva dúvida em larga escala, uma abordagem científica de maior amplitude pode trazer cenários possíveis. A partir de modelagens geradas com o auxílio de big data, a tomada de decisão se efetivaria de modo mais claro a todos os envolvidos, trazendo-se transparência e maior segurança quanto aos motivos levados em conta para o caminho aplicado ao caso.

A conjugação dos meios tecnológicos mencionados inevitavelmente conduz o sistema de proteção ambiental à promoção do desenvolvimento de inteligência artificial – machine learning  e deep learning – capazes de conferirem maior grau de eficiência aos licenciamentosO que se pretender colocar em pauta, portanto, é que a aplicação das ferramentas atualmente disponíveis parece ser um caminho sem volta. Conforme explica Schwab[10]:

Até recentemente, o uso de robôs estava confinado às tarefas rigidamente controladas de indústrias específicas; a automotiva, por exemplo. Hoje, no entanto, os robôs são cada vez mais utilizados em todos os setores e para uma ampla gama de tarefas, seja na agricultura de precisão, seja na enfermagem. Em breve, o rápido progresso da robótica irá transformar a colaboração entre seres humanos e máquinas em uma realidade cotidiana.

Em que pese a necessidade de produção de ferramentas nesse sentido, o poder decisório, é importante mencionar, deve ser mantido sob responsabilidade do agente público. Não acredita-se ser ele o único responsável pela ineficácia do sistema, mas sim a ausência de ferramentas que também lhe coloquem em posição segura para a manifestação do seu ato decisório – muitas vezes polêmico. Deve-se enaltecer o papel dos órgãos ambientais nesse cenário e reiterar que foram um dos responsáveis pela eficácia do sistema. Precisamos auxiliá-los, então, à transição para um sistema que una eficácia e eficiência, sendo que a tecnologia parece ser o caminho óbvio para tanto.

O conhecimento prático e detalhado obtido a partir do cotidiano ambiental é a maior riqueza nesse cenário. Humanos não serão jamais substituídos por robôs. A vasta quantidade de profissionais que conduzem o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) são as peças fundamentais para a construção de sistemas que representarão a transformação do licenciamento ambiental, com a efetiva sistematização dos processos  com auxilio da tecnologia, para um melhor controle e fiscalização e com uma efetiva preservação do meio ambiente, em consonância com os princípios estabelecidos na Lei Federal nº 6.938/81[11]. O momento em que vivemos agora – especialmente em épocas de isolamento social e ampliação do uso de melhores tecnologias para a troca de informações – é mais que propício para a revolução tecnológica ambiental que pretendemos.


[1] Alexandre Burmann: Advogado e Professor. Doutorando em Direito (UCS). Mestre em Avaliação de Impactos Ambientais (UNILASALLE/RS). Especialista em Direito Ambiental (PUC/RS). Secretário-geral da União Brasileira da Advocacia Ambiental (UBAA). Diretor na Associação Gaúcha dos Advogados de Direito Ambiental Empresarial (AGAAE). Membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RS.

[2] Rafael Pereira = Advogado e Professor. Mestre em Qualidade Ambiental (Feevale). Especialista em Direito Ambiental (Feevale). Presidente da Comissão Especial de Advocacia e Inovação – OAB/RS – Subseção Novo Hamburgo.

[3] Em favor e nesse sentido há proposta tramitando no Congresso Nacional: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=257161

[4] TALLACHINI, Mariachiara. Before and beyond the precautionary principle: Espistemology of uncertainty in science and law. Toxicology And Applied Pharmacology, [s.l.], n. 207, p. 645-651, 2005.

[5] DUPUY, J. P.; GRINBAUM, A. Living with uncertainty: from the precautionary principle to the methodology of ongoing normative assessment. Comptes Rendus Geosciences, v. 4, n. 337.

[6] BOSTRON, Nick. Superinteligência: caminhos, perigos e estratégias para um novo mundo. Tradução de Clemente Gentil Penna e Patrícia Ramos Geremias. Rio de Janeiro: Darkside, 2018, p. 25

[7] Entendem-se “machine learning” e “deep learning” como partes integrantes de um todo chamado Inteligência Artificial (AI – Artificial Intelligence).

[8] Ver: https://www.conjur.com.br/2018-out-12/fred-ferraz-jurimetria-ferramenta-importante-direito

[9] Ver: https://law.mit.edu/about

[10] SCHWAB, Klaus.A Quarta Revolução Industrial. Tradução de Daniel Moreira Miranda. 1. ed. São Paulo: Edipro, 2016, p. 25

[11] Art. 2º. A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócioeconômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana, atendidos os seguintes princípios:

VI – incentivos ao estudo e à pesquisa de tecnologias orientadas para o uso racional e a proteção dos recursos ambientais;

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6938compilada.html

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