“O dia em que a terra parou”

“No dia em que todas as pessoas do planeta inteiro resolveram que ninguém ia sair de casa. Como que se fosse combinado, em todo o planeta. Naquele dia, ninguém saiu de casa, ninguém”

Esse discurso, entoado numa melodia, profético, de Raul Seixas, acabou não sendo um dia, mas uma sucessão de dias e semanas… Mas a terra parou…

Quer dizer, não parou, assim paradinho sem se mexer. Mas parou.

Não porque deu a louca no mundo. Na verdade o mundo já estava enlouquecido havia muito tempo. Mas o mundo parou.

Não por um evento gigantesco, fantástico; nem por algo maravilhoso, nem catastrófico; também não foi por causa de invasão alienígena, como apregoaram todos os filmes de ficção sobre alienígenas invasores. Também não ocorreu um fenômeno apocalíptico, como crê, quem crê no apocalipse da bíblia… mas o mundo parou.

Bem, na verdade não foi exatamente como gritou, cantando, o velho Raul. Mas quase tudo parou.

Ao paciente o doutor mandou ficar em casa, por isso, também ele não estava lá… Nas igrejas, os fiéis não estavam lá, pois Deus não faz milagre onde cabe ao ser humano realizar; no trabalho, não estavam lá os trabalhadores; nas escolas, os estudantes não estavam e o professor não estava não porque não havia nada pra ensinar…o que não havia era como, pois ensinar havia o quê. Só que o mundo parou.

Não parou tudo porque o médico sabia que não sabia como curar, por isso não parou. Então alguns estavam lá. O doutor porque sabia que tinha muito para curar. A dona de casa, pois sabia que tinha que buscar o “de comer”. O guarda estava lá pra assegurar as condições de segurança, tanto de quem estava como de quem não estava lá….

Ela também não parou. E se alastrou. Circulou o mundo que não queria ou não sabia parar; ou havia perdido o freio e corria ladeira abaixo.

E foi assim quando ela se apresentou. Veio de avião. Não veio pelo chão, por onde pisa o povo, pisando a estrada por onde vai para o trabalho. Ela veio pelos ares que todos respiram. Sem ser vista, entrou pelos olhos, pela boca, garganta… foi sufocante.

Matou muitos. Não de alegria, pois não houve festa, mas de dor; da dor de não poder respirar; da dor de não ter remédio pra curar. E os que viveram, ficaram lá… parados, sem saber o que fazer; o quê dizer?

Ela chegou, doença maldita, e se instalou; e fez tudo parar. Pretendeu matar a tradição, pois elegeu os anciões.

Chegou com um nome pomposo: Corona.

Coroa, não de rei, mas de um vírus. Veio coroar um tempo… quando ninguém mais tinha tempo pra nada, nem para os amigos, nem para a família, nem pra morrer, menos ainda para viver… nem para Deus sobrava tempo! Até tempo para o trabalho quase não se tinha mais, pois a tarefa de hoje, “era pra ontem”, tal sua urgência. Tudo uma só correria. Um mundo de velocidade, no qual até os segundos tiveram que ser esquartejados em milésimos e milionésimos…

Rapidez, velocidade, dinamismo… as palavras que definem o mundo em que ela chegou… e fez tudo parar.

O Raul, em 1977, terminou seu brado, cantando: “Essa noite, eu tive um sonho de sonhador, maluco que sou, acordei”.

E nós? Não acordamos. Continuamos confusos e confundidos. Perdidos: para onde ir, Se tudo está parado? Pra que ir, se tudo está contaminado?

Estamos parados, sem saber o que fazer. Abestalhados, sem saber a quem recorrer. Abandonados, sem um sistema pra nos proteger.

Quando passarem os dias, que não se sabe quantos serão, alguém vai escrever a história. E nessa história não haverá espaço para os heróis, não que eles não tenham existido. Na hora de fechar o balanço, eles aparecerão. Mas terão sido anônimos. Como são todas as multidões que não se furtam em fazer algo para superar as dores.

Se não houver nomes dos heróis, sobrarão narrativas sobre os desencontros de informações. Sobre os vilões da história, que serão vilões não por serem vis, mas por que não estavam à altura das respostas exigidas e pelas tolices afirmadas.

Talvez, então, ao final do drama, tenhamos aprendido algumas lições: o lugar e a vez de valorizar quem realmente importa; descobrir quem realmente importa, não porque é um figurão, mas porque está ao nosso lado; descobrir o valor do tempo, não o do relógio, mas o de ficar do lado de quem é importante pra nós.

Talvez, então, quando este inferno passar, tenhamos aprendido a lição com o velho Raul. Então veremos que o “patrão” não é mais importante que o “empregado”, pois ambos existem em função do trabalho para todos. O guarda não terá mais razão de existir, uma vez que o ladrão também não haverá, pois os que hoje roubam nos gabinetes da politica ou nas esquinas terão aprendido a lição da solidariedade.

Talvez, então, já acordados, como o velho Raul, não tenhamos necessidade de ouvir os sinos das igrejas, pois elas deixarão de ser importantes, pois importante é o ser humano, esse sim, amado por Deus.

Talvez, então, tenhamos aprendido a lição e saberemos quão importante é o professor, não para ensinar, pois as informações já estão na rede, mas para ajudar a trilhar o caminho da sapiência. E não teremos mais espaço para os ridículos comandantes, nem para tolo soldado, pois já não seremos inimigos. E, nesse dia, estaremos curados. E, desse dia, não precisarmos acordar, pois nosso sonho já não será sonho.

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Neri de Paula CARNEIRO - Mestre em Educação UFMS (2008); especialista em metodologia do ensino superior, UNESC-RO (2002); licenciado em história pela Universidade Federal de Rondônia (1999); bacharel em Teologia pela Instituto Teológico de Santa Catarina (1989) graduado em Filosofia - Seminário Arquidiocesano Instituto Paulo VI - Londrina (PR) (1984). Professor concursado do Estado de Rondônia. Tem experiência no magistério desde 1992, como professor de ensino médio e superior, atuando nas áreas de Filosofia, História e Educação. Atua como colunista semanal em jornais regionais. Produtor e apresentador de programa radiofônico. Desenvolve atividades voluntárias ligadas à Igreja Católica, em Rolim de Moura-RO.